Não dá para reconstituir todas as famosas visões aparecidas no Teatro Amazonas nos longos anos em que o meu velho amigo Jorge Bonates trabalhou por lá, quase sozinho, e que ele descrevia com autoridade e às vezes em tom de galhofa. Falando verdade verdadeira, não duvido que tenha visto o piano tocar sem pianista, as portas baterem sem vendaval, a cortina ser aberta sem maquinista, e ouvido aplausos sem fim vindos da plateia, com as cadeiras vazias. Coisas assim que ele dizia arrepiando os cabelos de todos que ouvíamos a contação extremamente admirados. E ao final de cada história para confirmar a verdade ele invocava o testemunho do Valquírio que com ele trabalhava no mesmo casarão.
Falavam também das assombrações do Rio Negro Clube, local do cemitério São José, mas, tendo andado por lá desde quase menino, jamais vi ou senti alguma coisa diferente, nem ouvi relato de outrem. Talvez fosse para rivalizar com a velha e decantada história da mulher de branco que caminhava pela calçada do cemitério São João, e rapidamente sumia levando consigo um clarão.
O que sei, de ter visto muitas vezes a correria desabalada, é que por entre os fícus benjamins da Rua Ramos Ferreira, no escuro da noite alta, havia sempre um padre de batina preta querendo agarrar os meninos. Talvez fosse o mesmo padre que fazia das suas na Rua 24 de Maio quando encerrava a sessão noturna do cinema Guarany, mas isso é outra história.
Uma vez – eu soube de fonte séria e vi parte da arrumação–, um pequeno grupo de boêmios e seresteiros correu da antiga sede do Olímpico na Av. João Coelho até o estádio General Osório por ter visto assombração: uma bela mulher de saia justa, rebolando pra danado, que do nada varou pela frondosa mangueira que havia na esquina do clube dos cinco aros. E quem duvidar pergunte, porque tem gente bem viva que pode contar, além de alguns dos fujões que devem lembrar a hora fatídica da visão perfumada.
Os de verdade
Fugindo da assombração que é coisa que não sei explicar, passo aos vultos eminentes que deram a vida por uma cidade melhor. Para não haver omissão, que é pecado maior, não vou destacar nenhum nome em especial, e peço desculpas antecipadas, pois escrevi de memória e de uma só vez como costumo fazer, quase ao correr da pena, lembrando daqueles que mais me impressionaram, outros com os quais de alguma forma convivi, e de outros tantos que representam aceitação coletiva.
Mais... muito mais de uma centena poderia figurar na galeria desses vultos destacados, porque foram muitos os Adriano, Leopoldo, Pericles, Benjamin, Waldemar, Agnello, Bernardo, e não foram um só, nem dois nem três assim batizados os que estão inscritos na vida da cidade, e saltam à primeira vista só para animar a memória daqueles que estão recolhidos pensando no passado e bem podem multiplicar essa lista.
Correndo a pena sem cessar, quase de um respiro só, vou chegando perto da memória dos mais novos, perpassando geração após geração e o que não falta é gente boa que merece a citação. São muitos os José, Paulo, João, Josué, Epaminondas, Genesino, Rodolpho, André, Emídio, Anísio, Junot, Vasco, Garcitilzo, Aristóteles, Pedro, Octávio, Djalma, Sebastião, Herculano, Mário, Ruy, Vivaldo, Rayol, Raimundo, Crisólogo, Arthur, Jayme, Alípio, Manoel, Albérico, Mário Jorge, Lyra, Olímpio, Lauro, Leopoldo, Joaquim, Antônio, Plínio, Gilberto, Álvaro, Zany, e tantos em razão dos quais a cidade foi perdendo luz e alegria quando cada um partia dessa terra de verde e água.
E para que não digam que não lembrei de flores, vale saudar as muitas Donzinha, Janete, Luizinha, Maria, Violeta, Mãezinha, Léa, Lila, Vivizinha, Isabel, Myrtes, Milburges, Josefina, Andrea, Marília, Junilha,Elizabeth, Iaiá, Moema, Santana, Maricota, Elvira, Joana, Ivete, Miosótis, Antônia, Gasparina, Alayde, Lourdes, Antonina, Ângela, Albertina, Hermelinda, Mariana, Josefa.... e tantas outras que honram essa tradição.
Artistas
Também teve a turma que pulou, cantou, dançou e fez de tudo um pouco, metida em todas as artes. Desse time vem logo à lembrança o Fueth, Américo, Gebes, Aldemar, Hélio, Luiz, Arnaldo, Lindalva, Farias, Peduto, Pedro, Coriolano, Benjamin, Guanabara, Alfredo. Além deles havia o Neco, português sujo, Gisela do tacacá, Zé miolo, Serra do futebol, Maranhão do Luz de Guerra, Miro do boi-bumbá, Joana Galante, Duca Brito, Zamith, Andréa, Flaviano, Max, Tetenge, Mansueto, Aristophano, Virgílio, João, Maria, José, Francisco, Sebastião, Lourenço e Sebastiana, Ana Maria, Pedro e por aí vai, cada um com sua luz e seu sonho perdidos na imensidão dos tempos depois darem tudo de si, e até o perdão ofertarem para mudar esse mundo.
Pessoas especiais
No meio dessa conturbada vida social, enquanto as cadeiras eram postas nas calçadas para animar a boa conversa, gente muito especial fazia de Manaus recanto particular. Gente especial de verdade, cada qual com a vida que Deus lhe deu, mas que vivia a cidade e a ela pertencia com amor e alegria, mesmo sem saber que o mundo se abria sobre eles todo dia em luz e graça, em benção e fraternidade.
Na frente desse batalhão que me deixou muita saudade vinha o Xerife que gostava de dar ordens e impor respeito, seguido de perto pelo muito amado Bombalá, Raimunda do Dedé, Cotinha, Antônio do Instituto de Educação, Milton da Ramos Ferreira, João Mãozinha da Cachoeirinha, Alfredinho, Barbuda, Mucura, Nega Charuto do Boulevard, Carmem (a minha Carmen amiga) que vagavam sem parar por uma cidade pequena que era o mundo mais largo que podiam encontrar.
Cada um falava com seu próprio silêncio, e tornava Manaus mais humana. Quantos brincaram com eles! Como aprendi na pureza de cada um pelo olhar com o qual falavam e pela dor que sentia, ainda menino, sem conseguir compreender a razão da vida que levavam. A razão? Que razão que nada, viviam e amavam viver na imensidão do tempo e da vida que era só deles.
Verdade cabe dizer, que vulto, visagem, figurão ou não, nenhum foi santo nem vilão, foi de tudo um pouco na vida que levou. Cada um viveu, lutou e sonhou... Sonhou com a eternidade dos sonhos... e se encantou levando Manaus consigo. Deixando Manaus mais pobre.
Rei do apelido
Sem medo de ser feliz havia quem gostasse de rebatizar as pessoas dando apelidos tão bem apanhados que caiam feito luva. Um deles era Afrânio Castro, gênio na pintura, que de estalo, olhando uma só vez conseguia traduzir o dito cujo de forma peculiar e tascava: patativa de Moscou, bosta d’alma, cegonha rezador, cabelo de nylon, troglodita, coronel Farofa, cegonha vendedor, pé de cuia, tromba d’água, barão língua de trapo, caranguejeira, cegonha cantador, caveira risonha e pintor da bola preta, dentre muitos que arranjou.
Não sei se ele sabia de apelidos mais antigos, cujo autor desconheço, mas que foram vestidos em carapuça por muita gente de bem: busca-pé de vintém, pé de curica, doutor Raspadeira do Maranhão, chefe do partido da mentira, Pedro Cabral, Bituca, Chico Pubo, bigó, coronel Polvorosa, pudico, fedepulha, seu Duro, cabeleira, ganso do Capitólio, pata choca, boto e formigão.