Promessa das categorias de base, Luis Guilherme destaca em carta a importância do clube de General Severiano em sua formação, mesmo após não ter contrato renovado
Confira a carta de Luis Guilherme na íntegra:
Venho por meio desta carta formalmente agradecer ao clube Botafogo de Futebol e Regatas, que durante esses doze anos me ajudou na minha formação como atleta, como homem e cidadão. Lembro-me bem do primeiro teste para o Botafogo, em janeiro de 2003 para a equipe de futsal. Eu, oriundo do Pavunense Futebol Clube, um pequeno time do bairro da Pavuna onde cresci. Ao chegar me deparei com seis goleiros que lá estavam. Eu era o último deles, o que muitas vezes me levava a pensar em desistir, pois os treinos eram na sede de General Severiano e, como morávamos muito longe, o custo para as atividades eram caras e ainda tinha de comprar os equipamentos. Minha mãe, dona Elisa, e meu pai, seu Sergio, me ajudavam com o que podiam. Minhas irmãs, Anastácia e Tailize, costuravam minhas meias e joelheiras que sempre estavam rasgadas após os treinos. Assim o ano de 2003 passou.
Nesse mesmo ano eu fui para o futebol de campo no mês de agosto. Os treinos eram em Marechal Hermes, lugar que passaria a frequentar diariamente por mais quatro anos. Lembro-me bem quando saía dos treinos com o uniforme da escola para não pagar a passagem, e chegava em casa com a mochila cheia de roupa de goleiro, todas enlamaçadas e que precisavam estar limpas e secas para o dia seguinte. Minha mãe reclamava horas quando isso ocorria, e assim eu prosseguia. Era muito bom ver os pais reunidos, indo assistir a seus filhos jogarem por vários cantos da cidade, dessa forma o tempo foi passando.
Em 2006, já na categoria infantil, recebi um documento do professor Botinha (ex-lateral-esquerdo do Botafogo). Era o fax da minha primeira convocação. Depois daquele dia, e por mais 16 vezes seguidas por quatro anos, aquele fax chegaria ao clube com o meu nome na lista. Eu com 13 para 14 anos, ainda na oitava série, não sabia o que fazer. Um menino do subúrbio, que vivia jogando descalço pela rua com os amigos, viajaria de avião para outro país. Esse dia foi mágico na minha vida! Dias depois estava eu embarcando rumo ao Catar e em seguida para Barcelona, na Espanha. E assim, ano após ano, fui fazendo o que gostava, jogar pelo Botafogo, alcançar a seleção brasileira e me manter estudando.
Em 2007 após uma boa competição também em Barcelona, chegara a Marechal Hermes uma nova carta, esta diferente das anteriores. Tinha o escudo do Arsenal F. C. da Inglaterra. Devido à boa competição na Europa eu fui chamado para passar 15 dias em Londres e treinar no clube. Essa viagem foi a mais maravilhosa da minha vida. Pois poderia levar um responsável como acompanhante. Foi difícil escolher, mas injusto seria eu não levar a minha mãe comigo. Em 2003 ela trabalhava em dois empregos como diarista, e um era exclusivo para custear o meu lanche, a passagem e o material de treino.
E assim partimos eu e minha mãe rumo à Terra Da Rainha. Tudo era mágico! Conhecemos o Parlamento britânico, vimos o Big Ben, a London Eye, e tantas outras coisas legais. E claro sem esquecer a estrutura incrível do clube londrino e seus jogadores: Lehmann, Fabregas, Gallas, Arséne Wenger e companhia. A felicidade foi em dobro, pois minha mãe estava comigo. De tantos momentos difíceis que passamos juntos este era um grande alento para ela, e a minha grande felicidade foi de poder proporcionar tal momento. Esse ano foi ainda mais completo porque ganhamos o Sul-Americano Sub-15 pela seleção brasileira.
Em 2008, ainda de férias com minha família, recebo uma ligação para me apresentar em Caio Martins para treinar. Volto de Campos Dos Goytacazes e chego a Niterói. Ao abrir o vestiário me deparo com todos os jogadores do time profissional. A princípio, não entendi nada, mais logo fiquei esclarecido. Aos 15 anos de idade eu fui integrado à equipe profissional do Botafogo de Futebol e Regatas. Foi um processo muito delicado devido à minha idade. Exigiu uma adaptação muito rápida e muitas responsabilidades que tive de lidar. Lembro de minha mãe chorando quando o supervisor disse a ela que eu não seria mais dela.
Passaria a semana no clube para os treinamentos, teria acompanhamento de nutricionista, psicólogo, e o clube iria disponibilizar moradia e alimentação, além de um contrato que eu pudesse ajudar em casa. Minha mãe fez ao supervisor uma única ressalva: queria que o clube custeasse meus estudos, porque mesmo com as coisas dando certo no futebol, não queria que eu ficasse sem concluir no mínimo o ensino médio. O clube aceitou, e durante dois anos vivia em mundos extremos, alunos de 15 e 16 anos em aulas de história e matemática pela manhã e treinamentos puxados com marmanjos de 25 a 30 anos pela tarde. Assim fui levando uma vida duplamente corrida: jogador profissional e um adolescente e estudante que tinha de tirar boas notas.
2009! Com tendinite nos dois ombros fui para o Sul-Americano Sub-17, no Chile. Vencemos a Argentina nos pênaltis, fui muito criticado no inicio, mas superei em silêncio e com muito trabalho. Ali comecei a aprender os altos e baixos do futebol. Em seguida fomos ao mundial da categoria, na Nigéria. Um país com muitas dificuldades em vários setores, mas guardo até hoje esta viagem como a mais importante que já fiz na minha vida. Aprendi a sorrir mesmo em grandes dificuldades, aprendi a não reclamar tanto e a me cobrar mais, pois sei que há problemas bem maiores do que os meus.
No ano de 2010, passei pela minha primeira cirurgia no clube, foi um ano difícil, pois tive de seguir esse protocolo nos anos seguintes, e o meu espaço foi diminuindo. Entre inserção e remoção de parafusos no pé e na mão, eu já com o ensino médio concluído, sempre conversava com a psicóloga do clube, Maíra Ruas (hoje no Vasco Da Gama) sobre o futuro. E confessei a ela o desejo de cursar uma faculdade. Tinha tempo de contrato, mas devido às cirurgias, pensei que seria uma boa ideia. Sempre fui muito de ler, mas sentia falta também da minha rotina de estudos. Ela com sua atenção, e me conhecendo bem, desde 2006, me aconselhou na escolha do curso. Em setembro do mesmo ano fiz o vestibular, em janeiro de 2011, fui matriculado na faculdade de Psicologia, o primeiro da família a cursar o nível superior. Uma vitória como atleta? Sem dúvida. Mas ali, com meus 18 anos de idade, foi um grande passo como homem e cidadão.
Entrei para a faculdade e lá conheci não só o ofício de psicólogo, abri a minha mente para novos conceitos. Aprendi sobre política, filosofia, inglês, sociologia, medicina. Freud explicou! E agora os jornais esportivos se aglutinavam com os livros de Nietzsche, Sócrates, Bandura, Freud, Lacan, Platão, Lipovetsky, Bauman, Hegel, Skinner, Sartre, Kant e tantos outros grandes pensadores que mudaram e mudam até hoje a minha forma de ver o mundo. O futebol continuou, as lesões me tomaram tempo, os empréstimos tornaram-se rotina, e tudo passou muito rápido.
Fui emprestado para adquirir experiência, joguei e aprendi muitas coisas. Saí de uma bolha. A realidade do futebol é muito difícil e árdua para milhares de jogadores. Vi muitos em grandes dificuldades. Ouvi muitas histórias de superação, atletas que passaram fome, que pararam por lesões, com problemas familiares… A vida do futebol não é fácil. Meu espaço no clube foi diminuindo, um nítido sinal do epílogo de um longo ciclo de formação. Em 2014 eu passei a maior parte do tempo treinando separado. Fui emprestado em 2015 no mês de janeiro e retornei em abril.
No dia do meu aniversário, dia 4 de junho completei 23 anos, também encerrei um ciclo de 12 anos no clube que me formou. Das duas décadas que tenho de vida, uma se passou vestindo o uniforme alvinegro, vivendo o dia a dia do clube, na alegria e na tristeza, na vitória e na derrota. Fiz muitos amigos que levarei daqui pra frente. Aprendi com todos que tive contato, dos porteiros ao presidente. Todos foram meus professores, me passaram ensinamentos e lições de vida. Entrei um menino e saí um homem, de amador a profissional.
O grande motivo para formulação desta carta é o de agradecer ao clube por tudo que passei defendendo-o. Todos os momentos que vivi e todas as oportunidades que tive na vida são oriundos do meu esforço, mas sem duvida o clube Botafogo de Futebol e Regatas foi um grande catalisador para que tudo isso fosse possível. O balanço foi extremamente positivo, e só me cabe agradecer ao clube pelo qual sou um grande admirador e que guardo no meu coração com todo o carinho do mundo. Sempre estarei acompanhando e torcendo para que a sua estrela brilhe sempre. Por ora não pude me tornar um ídolo que estampa as suas galerias e que enche o seu presente e passado de muitas glórias. Seguirei a minha carreira como atleta, e torço para que seja um até breve.
Sou apenas um dentre tantos outros meninos que sonham em ser um jogador de futebol e que veem no Botafogo uma estrada para atingir tal objetivo. Muitos chegarão, muitos se despedirão assim como eu. Torço do fundo do meu coração para que muitos possam viver um pouco do que eu vivi no clube. E que saiam assim como eu saí. De um menino sonhador a um homem e atleta. Sou hoje um formando em Psicologia, atleta profissional e chefe de família. Tornei-me um bom filho, ajudei a minha família e aqueles que me ajudaram no início. Tornei-me um bom homem. E só tenho a agradecer ao Clube pela sua importância na minha vida e na minha formação. Obrigado por tudo, Botafogo de Futebol e Regatas.
Rio de Janeiro, 7 de junho de 2015
Luis Guilherme L. M. Alves
Nenhum comentário:
Postar um comentário